segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Arrepio

O cheiro de um crime é horrível, mesmo que tenha acontecido há 20 anos, ainda que nessa altura nem tivéssemos nascido ainda.
A Tatyana não só não tinha ainda vindo a este mundo, como ainda por cima é de bem longe, mas tem os olhos embaciados de espanto e a pele inquieta de tremor.
Descobriu que a barraca que ela e a família reconstruíram debaxo da linha do comboio e que tinha sido em tempos -já depois de ter abrigado o assassinato- destruída por máquinas retroescavadoras foi palco de um episódio atroz.
E soube disso pela televisão, mas aquele odor a sangue agora persegue-a e dá-lhe náuseas. Ela sabe que o mal existe e é concreto, tão real como o barulho do comboio que passa de 5 em 5 minutos e abafa os gritos que aquela mulher estrangulada deve ter vomitado.

domingo, 13 de novembro de 2011

Os olhos da Tatyana


Neste país as pessoas parecem mais altas do que na Roménia, mas é por as ver de baixo para cima que acho isso. Sento-me no passeio, encostada a um parquímetro, em cima de um cartão que não evita que sinta o frio e a humidade do chão. Seguro uma garrafa de plástico cortada com 2 moedas dentro que vou abanando para lembrar quem passa de me dar uma esmola, como quem agita uma roca para atrair a atenção de um bebé. Hoje não trouxe o meu rico menino, está muito constipado, ficou com a minha prima. De vez em quando dou uma espreitadela para os lados da barraca, embora não a veja daqui, mas se não vem lá ninguém a descer a encosta é porque deve estar tudo bem.

Se estivesse a chover ia ali para debaixo da linha do comboio, saem de lá magotes de gente que passam por mim e não me vêem, ou se vêem não ouvem porque levam coisas a tapar os ouvidos. No entanto, não precisam de ouvir o que digo ou ler a mensagem escrita num papelão, percebem perfeitamente o que estou a fazer e passam ao lado. De vez em quando alguém se aproxima e deixa uma moeda, mas nem olha para mim. Não me importo. Às vezes penso como seria se também eu apanhasse o comboio e andasse na rua distraída sem ter de me preocupar com o que comer. Nesse dia daria esmola a todos os pedintes que encontrasse e talvez também um sorriso, depende da confiança que me inspirassem, mas se fossem mães com crianças ia querer brincar um bocadinho com o menino ou pelo menos saber o nome e a idade da criança e iria reparar que estava constipada. Mas não sei andar de pé, não sei fazer nada, não posso deixar os meninos, nem sei que caminhos escolheria e que comboio apanharia.

Se estiver bom tempo, prefiro ficar na rua, não há seguranças a chatear-me e há mais distracções, além de não ficar tão escondida pelas multidões. Aqui há muitos prédios, alguns bem impressionantes, por mais que tente puxar pela cabeça não consigo ter ideia do que toda esta gente faz lá dentro. Sei que vão sempre com muita pressa e que é com o que ganham lá que se vestem bem e comem tudo o que querem, mas o que fazem não faço ideia. Compreendo o trabalho do restaurante e das cafetarias aqui da rua e também sei o que tem de fazer o chinês da loja de roupa, mas nos andares superiores não consigo imaginar. Habituei-me a ver estas pessoas e estas ruas e estas lojas como paisagem, fazem parte de outra realidade à qual eu não pertenço e por isso acabo por não as ver, nem aos seus carros, nem aos sacos e bolsas que carregam. Vejo, isso sim, os polícias, os varredores de rua, os carteiros e os taxistas, que me insultam, desprezam e expulsam da rua.

Ganhei 5,15€ hoje, vou à loja do chinês comprar massa para o jantar, passo no supermercado e compro vinho para o marido e com o que me restar hei-de ir à farmácia comprar alguma coisa para a tosse do menino. Depois atravesso a linha, subo a encosta da estrada, contorno a “horta” do Ti Manel a quem comprarei cenouras e chegarei à nossa barraca. Espero que o Ronan esteja melhor. Hei-me abraçá-lo e dar-lhe mama.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ternura II

Impecavelmente bem vestido, com um fato de fazenda apropriado para o tempo frio, aparenta ter uns 80 anos. É moreno, encorpado e tem olhos esbugalhados com umas olheiras tão profundas que parece já ter sido ali o sítio dos olhos agora empurrados para cima. A cara larga suporta ainda uma boca em forma de curva descendente, relaxada.
Sento-me à sua frente no metro e não fico indiferente ao ramosque leva na mão com a mesma naturalidade com que seguraria uma bengala ou um guarda-chuva.
São duas orquídeas em tons neutros, atadas uma à outra por uma linha branca de costura.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Ternura


A imagem é bonita: são velhos e vão de mãos dadas. Têm um aspecto simples e rude, desajeitado, de quem ensinou a vida a ganhar o pão em cada dia. A contemplação da ternura das suas silhuetas a caminharem assim juntinhos à minha frente enterneceu-me e lembrou-me as lágrimas que chorei devagarinho há poucos dias quando vi uma rapariga jovem e bonita a ajudar uma idosa coxa a atravessar uma rua perigosa. Fiquei tão feliz, como se tivesse encontrado uma prova irrefutável para comprovar uma teoria: o mundo está mesmo povoado de pessoas boas.

Rapidamente me aproximei dos velhinhos e quando os ultrapassei já eles estavam junto ao seu carro. Ele dentro a tentar abrir a porta dela que do lado de fora resmungava que não conseguia entrar. Ele esticava-se todo e ia puxando o manípulo, barafustando por seu lado. Quebraram qualquer coisa naquele momento não na porta, nem no carro, mas no cenário que tinham protagonizado. Partiram o vidro da moldura engalanada de quadro de museu e saltaram para a vida concreta, fraca, vil, mas linda ainda assim.

E eu segui, com um sorriso nos lábios, divertida com a rabugice deles.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pureza




A água era o seu maior fascínio, passava horas a brincar com os pés num rego, a alterar o seu percurso, a fazer experiências com as pedras e a encantar-se com a forma como a água arranjava sempre uma forma de contornar os obstáculos.

Às vezes também brincava com as primas mais velhas, mas elas só gostavam de bonecas e de conjuntos de chá e de café de brincar que nunca sujavam e onde ela não podia colocar o excelente café de terra que fazia porque os brinquedos das primas nunca iam para a rua.


Era por isso que ela se juntava mais com o cenourinha, um rapazinho apelidado pelos outros de “atrasado”, nome que ela nunca compreendeu bem porque ele era sempre o primeiro a aparecer na rua de manhã com os beiços ainda sujos de chocolate e com um sorriso rasgado quando a mãe o levava para brincar com os outros meninos que à medida que iam aparecendo faziam grupos,equipas, planeavam jogos sem nunca o incluírem. Sabia que também não era por ele chegar atrasado à escola, mas que era por causa da escola que ele tinha aquela fama. Embora fossem da mesma idade, ele não passava do primeiro ano. Gostava dele porque tinha a doçura das meninas, mas mais paciência do que elas.

Quando passava o autocarro na rua deles, costumavam parar de brincar para verem o que as pessoas traziam da cidade: instrumentos musicais de plástico, sacos de fruta, árvores para replantar, roupas novas, doces, chapéus da moda... Às vezes, ofereciam-se para ajudarem alguma tia ou vizinha a carregarem os sacos, mas desta vez não conheciam ninguém e mantiveram-se encostados a um cano de água a tentar compreender a voz de trovão que lhes falava lá de dentro. E a menina viu então junto à hera do muro um frasquinho pequeno com água lá dentro. Desta vez, achou mais graça ao frasco em forma de rosa do que ao líquido e apanhou-o fascinada. O cenourinha olhava-a com olhos grandes e lábio inferior relaxado. Nunca tinham visto uma garrafa tão bonita e decidiram deitar fora a água para ver como ficaria cheia de líquidos de outra cor. Deram então conta que não era água, mas sim um perfume e arrependeram-se de o ter desperdiçado, mas nessa altura já os seus sapatos e meias estavam salpicados e o frasco não tinha nem mais uma gota e eles divertiram-se a fazer misturas de água com pétalas, batido de folhas e cal que saía do muro.

Nesse dia acabou o Verão e os sapatos foram arrumados. Muitas voltas o mundo deu até que, num dia de Outono, a menina já mulher levou a sua filha à escola das crianças agora chamadas “especiais”, ela continuava sem entender a expressão porque achava que só por serem crianças todas eram especiais. A menina levava nos pés os sapatos que a mãe da mulher arrumara há tanto tempo atrás. Quando chegaram foram conhecer os ateliers criativos e a mãe da menina viu numa prateleira da sala de trabalhos manuais um frasco em forma de rosa com areia colorida lá dentro que reconheceu e lembrou-se do perfume que ainda estava nos sapatos da menina e a transportava para momentos felizes. Olhou melhor para o formador, era o cenourinha. Foi falar com ele e contou-lhe tanta coisa, descrevendo com todos os pormenores a gravidez da filha e a origem da deficiência dela. Ele não percebeu nada, mas mostrou-lhe um sorriso tão doce e puro que lhe pareceu água e ela sentiu-se em casa. E começou a entender porque é que a sua filha era especial.


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Maternidade




Tão improvável como ter nascido neste sítio foi ter chegadocá agora mais de 30 anos depois. A caminhar ao acaso pela cidade: avirar à direita ou à esquerda ao calhas conforme o lado da rua onde bate o sol,arrepiozinho de prazer; a parar para ver um pormenor da rua que fotografo: aolado da tabuleta oficial “Rua da Torrinha”, outra indicação pintada na paredeelucida “Rua Júlia Nogueira, ínsígne mestre das sirigaitas”; a desviar-me de umabelhão que plana à altura do meu nariz; mais à frente vejo do lado direito darua um palácio imponente que parece ter sido transformado numa discoteca eimpressiono-me com o facto de os vidros frágeis e velhos estarem todosintactos… e depois “Maternidade Júlio Dinis”. Mas foi aqui que eu nasci!! E averdade é que nunca mais cá tinha voltado. Quis entrar, o sítio onde nascemosafinal será sempre a nossa casa.

Apesar de a minha mãe me ter registado como natural dafreguesia onde sempre vivi, eu sou daqui porque foi este mundo que abriu umacratera para me acolher e me deixou ganhar fôlego e gritar. Obrigada pedras,lago e buganvílias secas, mesmo que já não sejam os mesmos!

Onde será que estacionou a ambulância que atravessou ascurvas da montanha com a minha mãe a contorcer-se de dores? Quem terá visto omeu rosto pela primeira vez? E o que terá sentido o meu pai quando entrou aquihoras depois depois de uma viagem atribulada de camioneta com os nervos aquererem sair pela boca?

Não sei se são as vidas, as pedras ou o medo reciclados queme sussurram agora numa frescura matinal: “a viagem foi longa, mas chegaste aosítio certo, está tudo pronto, podes nascer”.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Movimento


Cheguei à porta da Loja do Cidadão cedo demais, já não valia a pena ir para a fila que dava a volta ao quarteirão, mas também não podia entrar sem deixar escoar, gota a gota, aquela gente toda lá para dentro. Fiquei por isso parada no meio da rua, sentindo a pulsão da multidão a girar à minha volta, organizadamente. Eu, de auscultadores nos ouvidos, abstraída, serena, em paz, a rezar, a ser o centro do mundo. À minha volta, pessoas, pessoas, a serem cenário, enquadramento, a darem movimento àquele momento, a não serem pessoas porque nem as conheço, nem as ouço, nem as vejo.
Eu e o meu egoísmo, mas a paz daquela música, daquela abstracção, a chamar-me a dar rostos às pessoas. São só estranhos, nunca poderei contar as suas histórias, mas fizeram parte da minha história e essa se quisesse podia contar.
Fico assim mais uns minutos e daqui a nada na minha cabeça muitas coisas darão forma aos meus pensamentos: fazer isto, falar daquilo, não me esquecer de, despachar-me. E mais logo comprar, arrumar, avisar, telefonar.
Mas naquele momento era eu, ali, sem pensar.
E vieram outros dias: tempestades interiores, dúvidas, medo e paixão. Vieram outros momentos de auscultadores nos ouvidos, a mesma música até. E aquilo que eu sou a espreitar aqui e ali. Eu a escrever-me sem saber a minha história. Mas ficará aquele momento, aquela frase minha, até a esquecer ou a riscar.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Estórias



Encontro-a por acaso na rua depois de algum tempo sem a ver no salão. A Marlene está gira como sempre: usa roupa curta e apertada dos últimos saldos das lojas de roupa para massas do shopping e está maquilhada demais para o meu gosto. Mas muito ela, toda equilibrada em cima dos seus 21 anos, amparada ainda assim no braço do namorado, não vá um salto deixá-la mal.

Sorri quando me vê e pára para cumprimentar. Não posso deixar de reparar que tem a blusa molhada, uma gotinha no peito. Comento isso.

- Ah!! Que chatice! Estes coisos não prestam, tanto faz pô-los como não. Mas prontos. Olhe, doutora, temos de ir, estamos com pressa.

Percebi depois quando fui arranjar o cabelo.

A rapariga era o tema de conversa preferido e o principal alvo da pena e espanto do mulherio. Ia visitar os dois gémeos que tinha tido há 15 dias atrás e estavam numa incubadora por terem nascido antes do tempo.

Lembrei-me das conversas dela acerca dos reality shows e telenovelas na tv, das saídas à noite e dos mexericos do cabeleireiro e pensei: “será que nas revistas que ela lia aprendeu alguma coisa sobre bebés?” Mas ela só lia os títulos e algum parágrafo mais gordo, de resto o que a seduzia mesmo eram as imagens, as roupas, os penteados e a elegância ou falta dela...

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Água


Estás grávida, perdes uma manhã para mostrar uns papeis a uma médica, para ela em menos de 5 minutos te despachar com palavras à deriva que te perturbam. Isto não sem antes teres pedido especial favor para seres atendida depois de teres guardado a sua porta horas a fio em pé com o barrigão e ainda teres ouvido umas bocas de uns velhotes por estares a passar à sua frente.

Sais para ir à tua vida com os olhos húmidos e um qualquer combate de kickboxing ali para os lados do peito entre o arrogante alívio por teres saído dali e o sempre vencedor medo do desconhecido.

Ainda não tínhamos dito que chove e que vais em passo rápido, queres te afastar dali, apanhar o metro, esquecer. E é então que passa um carro e com toda a perícia esvazia uma poça de água da estrada completamente para cima de ti. Choras.