quinta-feira, 23 de junho de 2011

Movimento


Cheguei à porta da Loja do Cidadão cedo demais, já não valia a pena ir para a fila que dava a volta ao quarteirão, mas também não podia entrar sem deixar escoar, gota a gota, aquela gente toda lá para dentro. Fiquei por isso parada no meio da rua, sentindo a pulsão da multidão a girar à minha volta, organizadamente. Eu, de auscultadores nos ouvidos, abstraída, serena, em paz, a rezar, a ser o centro do mundo. À minha volta, pessoas, pessoas, a serem cenário, enquadramento, a darem movimento àquele momento, a não serem pessoas porque nem as conheço, nem as ouço, nem as vejo.
Eu e o meu egoísmo, mas a paz daquela música, daquela abstracção, a chamar-me a dar rostos às pessoas. São só estranhos, nunca poderei contar as suas histórias, mas fizeram parte da minha história e essa se quisesse podia contar.
Fico assim mais uns minutos e daqui a nada na minha cabeça muitas coisas darão forma aos meus pensamentos: fazer isto, falar daquilo, não me esquecer de, despachar-me. E mais logo comprar, arrumar, avisar, telefonar.
Mas naquele momento era eu, ali, sem pensar.
E vieram outros dias: tempestades interiores, dúvidas, medo e paixão. Vieram outros momentos de auscultadores nos ouvidos, a mesma música até. E aquilo que eu sou a espreitar aqui e ali. Eu a escrever-me sem saber a minha história. Mas ficará aquele momento, aquela frase minha, até a esquecer ou a riscar.